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Ações afirmativas
Imprensa e Ações Afirmativas
Visualizando o estrago, por uma fresta na ‘Veja’
Sexta, 15 de Junho de 2007.
Foi forte a pressão no mês de maio, as empresas de comunicação abriram fogo cerrado contra as políticas de superação das desigualdades raciais. Ainda no último sábado havia editorial no “Estado de S. Paulo”, restos fumegantes da grande fogueira acesa no mês de maio em louvor da princesa Isabel, fagulhas repisando a mesma ladainha em favor da ‘meritocracia’ e contrária a políticas que só ‘disseminam’ racismo.
Como avaliar a real dimensão desse estrago? O governo, hesitante, recolheu-se ainda mais. Mesmo aquelas instâncias de governo voltadas especialmente para o tema parecem perplexas diante dos impasses e resistências e da forte campanha dos meios de comunicação.
Julgo apropriado recordamos um fragmento de pronunciamento de Nelson Mandela, em 16 de dezembro de 1997, após três anos no governo da África do Sul, durante a 50ª Conferência do Congresso Nacional Sul-Africano, na apresentação do que chamou de “relatório político”. Mandela disse o seguinte:
“Talvez uma das lições mais dramáticas e importantes que aprendemos nos últimos três anos é a de que todos os elementos de nossa sociedade refletem e se caracterizam por 300 anos de dominação colonial e pelo apartheid.
Nosso movimento, a liderança que está reunida aqui, em cujas mãos está o futuro de nosso país ainda por muitos anos, tem de entender esse fato de maneira profunda e abrangente, que o país que herdamos é essencialmente estruturado de forma a nos negar a possibilidade de atingir a meta de uma nova sociedade centrada no povo.” (Ver Mandela, Nelson. Vencer é possível. Rio de Janeiro: Revan, 1998, p. 134.)
O entendimento ‘profundo e abrangente’ dessa dimensão que é também estrutural à sociedade brasileira está muito longe, portanto, do equívoco de quem imagina poder tocar alguma política em favor da população negra limitando-se a desbaratar recursos em shows e eventos estéreis. A resistência dos meios de comunicação é apenas uma das expressões possíveis do “essencialmente estruturado” a que se referiu Mandela.
Que estrago uma campanha massiva antinegro, como essa que foi desencadeada em maio, provoca em nosso próprio meio, historicamente já tão intimidado e oprimido? Alguma coisa sempre fica, nós sabemos. Ainda que não se deva descartar que se fortaleça, entre os mais ativos, com a diminuição da margem de diálogo e o encolhimento do governo, o desencantamento que abre caminho à forte tentação de ações radicais, de confronto direto.
Li ontem à noite com atenção a seção de cartas da revista “Veja”, que divulgou onze correspondências de leitores acerca do tema “raça não existe”, objeto de matéria de capa na edição da semana passada.
No conjunto São Paulo se destaca com quatro cartas, mas todas as regiões se fazem representar na seleção editada pela revista. Numa primeira leitura salta à vista que todas acolhem acrítica e passivamente a linha argumentativa da reportagem a que se referem: raça não existe, cota é racismo e segregação racial, o Estatuto do Negro segue modelo americano e/ou nazista, somos uma ‘deliciosa salada racial’, políticas ditas “sociais” resolvem nossas desigualdades e a culpa é do governo do PT.
Depoimentos de negros sendo utilizados para legitimar o ataque às ações afirmativas são recorrentes e fazem parte, digamos, do ‘modelo’ de refutação adotado pelas empresas de comunicação. Nem sempre, porém, pode-se tirar plena vantagem do expediente e o resultado pode até mesmo contrariar as expectativas. Vejamos duas cartas do lote divulgado pela ‘Veja’ ontem, nas quais os missivistas se definem ‘negro’ e ‘afro-descendente’ (edição 2012, ano 40, nº 13 páginas 30 e 31).
Em uma das cartas, o leitor Luiz Otávio Montenegro Jorge, de São João de Pirabas, no Pará, se autoproclama afro-descendente, mas não fala de si, de sua experiência pessoal, o negro é o outro. Refere-se ao passado da escravidão, mas para negar que dela possa decorrer como conseqüência políticas que diferenciem brancos de negros. Luiz Otávio distingue preconceitos: oficializado e não- oficializado. O ‘oficializado’ é manifestação de grande gravidade e resultaria do estabelecimento de políticas públicas em benefício dos negros, na verdade confunde-se com as cotas. O não-oficializado está implícito e se manifesta num grau aceitável ou preferível.
O texto de Luiz Otávio, em suma, limita-se a reproduzir a argumentação da reportagem de ‘Veja’, onde se afirma que distinguir é discriminar, derivando a concepção esdrúxula de que se pratica racismo quando se implementam políticas públicas em benefício dos negros. Luiz é a única versão possível de afro-descendente que agrada aos brancos.
O outro leitor, Leandro Pereira Mota, de Taubaté, São Paulo, se define como negro e surpreende. Leia a íntegra do fragmento divulgado:
“Como negro, nunca me senti inferiorizado pela cor da minha pele, e não é com cotas que se igualam as coisas. E as pessoas pobres de pele branca, como fazem para entrar numa faculdade? Eu já tive de ouvir que não possuía padrão europeu numa entrevista de emprego, e com certeza não é o governo dizendo que eu sou negro que fará o racismo acabar no Brasil. Chega de demagogia.”
O racismo aqui não é uma decorrência das cotas. O racismo está associado ao modo como pessoas de um grupo vêem pessoas de outro grupo, gerando como conseqüência a recusa ao emprego. Leandro é negro e fala de si, de sua experiência pessoal. Leandro acusa o governo de fazer demagogia com as cotas, porque elas não são capazes de acabar com o racismo e não porque o racismo não exista no Brasil. Leandro diz que estimular a identidade racial sem encaminhar ações efetivas que permitam ‘igualar as coisas’ é demagogia.
Se pessoas brancas pobres entram na faculdade, como é que se igualam as coisas? Leandro não se sente portador de atributo que devesse inferiorizá-lo. As cotas não parecem em sua visão o meio adequado para superar a hierarquização motivada por distintas aparências (superior/inferior). E além da escola? Leandro foi preterido no acesso a uma vaga no mercado de trabalho porque não tinha uma aparência européia. ‘Ter de ouvir’ é igual a ‘foi obrigado a engolir’, teve de submeter-se, sujeitar-se a uma norma racista da empresa em que buscava emprego. O que decidia o acesso ao emprego era a aparência ( a cor, a raça que não existe).
A Constituição diz outra coisa e, em um país que a mídia diz abominar o racismo, fico especulando quais as razões que levaram Leandro, um sujeito que não se sente inferiorizado pela cor da pele, a não procurar a delegacia mais próxima e prestar queixa como vítima de racismo. Leandro refere-se a uma sociedade que o obriga a ser ‘segundo’, a ser preterido por um ‘primeiro’ de aparência européia.
A argumentação das empresas de comunicação e formadores de opinião recorre sempre a uma projeção que diz que o estímulo à identidade racial vai tornar as coisas muito piores. Como Leandro sabe o que é racismo na prática, penso que ele refuta aquilo que possa vir a piorar o que já vai muito ruim. Ele quer igualar as coisas, não piorá-las. Acho que temos aqui uma pista de como a forte campanha da mídia bate em nosso povo. Um recuo, uma tragédia.
Fonte:www.mundonegro.com.br
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